Olá, leitores, como vão? É com prazer que trago para vocês a resenha de “A metade perdida”, de Brit Bennett. Esse foi o livro de março do Intrínsecos (unboxing aqui). Já tinha ouvido falar sobre essa obra quando a autora lançou fora do Brasil. Mas não tinha me envolvido na história, que acabou sendo uma grata surpresa. Enfim, espero que aproveitem a leitura dessa resenha a partir de agora:
A HISTÓRIA DE “A METADE PERDIDA”, DE BRIT BENNETT
Desiree e Stella. Ou as irmãs Vignes, como ficaram conhecidas em Mallard (cidade fictícia dos Estados Unidos da América). Certamente, o que se destaca nelas é que elas são as gêmeas idênticas que fugiram da cidade aos 16 anos. Contudo, uma delas retorna, 10 anos depois, chocando os moradores da cidadezinha que abriga uma comunidade negra. Mas, a marca dessa comunidade é que as pessoas têm pele clara – e que geração após geração tentam clarear ainda mais a pele.
Acontece que uma das irmãs Vignes não retorna sozinha. De mãos dadas, ela e a filha, que tem a pele muito escura. Isso porque essa irmã se casou com um homem negro. Enquanto isso, a outra irmã buscou uma alternativa de vida. Ela se passa por uma pessoa branca, mesmo que seu sangue diga outra coisa. E mais, o marido branco com quem se casou não faz ideia desse passado. Então, enquanto separadas pelas mentiras, o destino das irmãs continua interligados. Mais ainda, quando os caminhos de suas filhas se cruzam.
A NARRATIVA
Bom, o livro é narrado em terceira pessoa, e os capítulos são longos. Portanto, a leitura pode se tornar um pouco mais densa e difícil no início. Mas isso não é ruim, pois a história é tão envolvente, que você mergulha de cabeça nos personagens e suas tramas. Logo a história ganha “corpo” e vai se tornando mais interessante. E o que ajuda isso é a própria escrita surpreendente e instigante da autora, que parece amadurecer conforme a linha do tempo. Aliás, logo no primeiro capítulo, a autora já mostra a que veio ao narrar algo impactante conforme vamos nos familiarizando ao ambiente e personagens.
Isso porque, na época em que o livro se passa, há uma cultura enraizada. Ultrapassada, eu diria, mas é uma cultura, especificamente na cidade de Mallard. Onde as pessoas são, há gerações, em sua maioria, negras de pele clara. E isso criou uma diferença entre os que são de pele escura, algo semelhante ao preconceito que conhecemos bem hoje em dia, mas que tem um nome específico: colorismo. E de imediato isso é algo que incomoda. Por isso essa narrativa pode ser densa, mas ela é carregada de história e representatividade.
TERMOS ULTRAPASSADOS
É interessante que a autora escolheu usar termos ultrapassados em nosso tempo, mas usuais entre as décadas em que se passa a história. Felizmente, a editora teve a sensibilidade de deixar uma nota logo no início explicando isso. E isso é extremamente importante, porque mesmo sendo conscientes e sabermos que se trata de uma ficção, um “desavisado” pode acabar se impactando de maneira negativa. Mas isso também pode gerar certos gatilhos. Principalmente em quem, hoje em dia, sofre preconceito diariamente.
E isso está ligado ao impacto que causa o retorno de Desiree a sua cidade de origem, por estar junto de sua filha, Jude, uma criança de “pele escura”, diferente dos “padrões” daquela comunidade. E claro, isso gera comentários e uma atenção diferenciada para a menina. Inclusive, com conversas de tom preconceituoso, pelo menos para nós, mas que eram considerados “normais” para tal comunidade. E quando conhecemos um pouco mais da vida de Jude – da infância à vida adulta – percebemos o real impacto disso.
O PRECONCEITO PAUTADO EM “A METADE PERDIDA”, DE BRIT BENNETT
Obviamente há essa diferença entre brancos e negros que a autora explora em sua obra. Mas aqui há uma terceira via, que são os de pele clara e os de pele escura, como eu disso, o colorismo. E há atritos entre ambos. Como se um fosse melhor que o outro. E isso também impacta, pois não está longe de nossa realidade, ainda que seja mais implícito do que explícito como nesse romance. Mas isso está diretamente ligado às irmãs, e o que o levou à separação delas, antes tão unidas.
Enquanto uma é obrigada a retornar a Mallard e para essa comunidade preconceituosa, outra vive do bom e do melhor como uma pessoa branca – e ela tem plena consciência dos benefícios que essa “condição” lhe dá. E é isso o que mais revolta. Pois essa vida nova é, na verdade, uma farsa, regada a privilégios por, obviamente, “ser” branca. Ser algo diferente de sua origem. E sim, talvez era mais fácil assim, mas será que esse era o melhor caminho?
MUDANÇA DE FASE E DE RITMO
A partir da segunda parte do livro, a história ganha um novo rumo e um novo ritmo. Me senti muito mais envolvido nessa parte que foca em Jude e sua experiência fora de Mallard, na faculdade, conhecendo outras pessoas. Mas sempre voltando a questão racial, como isso ainda influencia as coisas ao seu redor e como ela se vê em relação ao mundo. Porque ela não é apenas negra. Ela é negra de “pele escura” (para usar os termos da autora). E isso também choca os personagens e nos coloca em perspectiva sobre como também vivenciamos isso na vida real.
Enfim, o que eu quero dizer é que a partir da segunda parte, a escrita parece deixar de ser algo engessado (não que isso seja demérito da autora), ganhando um novo ritmo. Acredito que seja pelo envolvimento maior com os personagens – e também porque saímos do contexto “Mallard”. Ou seja, é possível conhecer outros cenários e ver como o mote do livro também está presente nesses lugares, principalmente para a época em que o livro se passa.
E aí devo destacar outra coisa que achei interessante. Foi uma ótima escolha da autora dividir as partes dos livros por anos e o que eles representam. Isso ajuda a contextualizar a história, principalmente em relação aos negros e como eles são tratados nas variadas situações. Isso porque conseguimos analisar como esse tratamento vai mudando ao longo dos anos, mas como o preconceito continua, de certa forma, enraizado.
AS TRAMAS PARALELAS DE “A METADE PERDIDA”, DE BRIT BENNETT
Apesar de a história girar em torno dessas irmãs, com visões diferentes da vida, a autora cria outras tramas que ajudam a mover a história. Claro, a “irmã perdida” ainda ronda cada página, como um fantasma de uma pessoa viva. Mas essas outras tramas são importantes para contextualizar e desenvolver melhor a história. E o “melhor” é que o livro, como disse, carregado de representatividade, não se limita só à questão dos negros. Tem um outro movimento presente na história, ligado à Jude, que também é bonito e valeu a pena a leitura.
Além disso, a autora também mostra a perspectiva de Stella. É uma trama paralela, mas obviamente ligada ao foco do livro. Contudo, é interessante ver como ela descobre essa “mágica” de se passar por branca, e as coisas que conquista a partir disso. Isso pode ser algo ultrajante, ridículo. Mas também há um histórico traumático em sua vida. Enquanto isso, Jude é uma negra que se lança ao mundo. Ainda que receie sua cor, do que isso pode gerar, ela segue em frente – e a autora explora bem esse contraste.
Também há o encontro das filhas, que aumenta ainda mais o contraste da história. Uma, Jude, batalhando pra conseguir uma vaga na universidade, tendo que lidar com o preconceito diário; outra, Kennedy, que tem tudo de mão beijada, faculdade e dinheiro, mas desiste do primeiro pra seguir seu sonho de ser atriz – ainda que não seja “feliz” com a vida. É o tipo de garota branca estereotipada que conhecemos bem. Aliás, chega a ser irônico o fato de ela ser atriz, quando se tem uma mãe que fingiu a vida inteira ser alguém que não é.
CONCLUSÃO: UM LIVRO NECESSÁRIO E IMPACTANTE
A última parte a autora deixou para dar alguns pontos finais. Para despedidas, reencontros, partidas e recomeços. E isso pode ser melancólico, nostálgico, mas foi bonito e profundo. Uma forma de, de fato, colocar um ponto final na história. Uma história de pluralidade, preconceitos, amadurecimento, gratidão e fé. Na humanidade? Não sei. Mas fé. E é isso que importa para mim.
Enfim, pessoal, sem querer me estender mais, eu diria que esse é um livro muito necessário, mas é também impactante. Como disse lá no começo, em alguns momentos, pode dar alguns gatilhos por toda a questão envolvendo o racismo e colorismo, tão importantes de se discutir hoje em dia. Mas é uma história que vale a pena ler. Fiquei muito feliz de conhecer a escrita de Brit Bennett e espero ler outros livros seus. E é isso. Espero que tenham gostado dessa resenha e até a próxima!
Ficha técnica
A metade perdida
Autora: Brit Bennett
Páginas: 336
Editora: Intrínseca/Intrínsecos
Ano: 2021
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